Uma Memória Feliz
Acho muito difícil escolher um momento feliz. Para mim pelo menos, que me considero uma colecionadora de memórias e momentos. Em sua maioria, esses momentos felizes são parecidos. Festas, encontros com amigos, shows, jogos. Então, pensando em excluir momentos semelhantes, fica mais fácil encarar e descrever os momentos que mais mexeram comigo, que mais ficaram marcados na minha memória. Com isso, hoje vou falar sobre o dia que eu achava finalmente ter encontrado o tal “amor da minha vida”.
Eu ainda estava no ensino médio, terceiro ano. Solteira, feliz, preocupada se entraria para a faculdade de educação física ou se iria optar por jornalismo. No começo do ano eu ainda namorava, e foi um relacionamento muito difícil, foi ele quem me trouxe a assustadora ansiedade que eu não conseguia me desprender. Mas estamos falando de 6 meses depois do término, eu já estava tranquila, tinha melhorado muito em relação à ansiedade.
Quando eu chegava em casa, no entanto, me sentia completamente vazia. Não pela falta de um relacionamento, mas pela solidão completa. Parecia que todos que diziam ser meus amigos desapareciam quando o sinal de saída tocava. Em casa eu ficava completamente só, meu irmão mais novo estava na escola, meu irmão mais velho e meu pai trabalhando e minha mãe sempre dava uma escapada para não ter que ficar presa dentro de casa. Eu não tinha sequer o direito de sair de casa, meus pais me perguntavam para onde eu iria querer ir, afinal, ficar em casa é muito melhor do que ficar na rua. Discordo.
Em um dia em particular, quando eu sentei na minha cama e minha mãe tinha acabado de sair, eu comecei a chorar exaustivamente. Era como se a solidão fosse uma névoa escura que me cercava e me impedia de respirar a cada minuto que se tornava mais densa.
Esse dia tinha sido a gota da água para mim. E normalmente sempre que eu chegava no meu limite eu ia para a minha gaveta de tralhas e tirava de lá um canivete para que pudesse desenhar linhas em meus braços e, através da vazão do meu sangue escuro, me libertar daqueles sentimentos obscuros que percorriam pelo meu corpo. Mas nesse dia eu decidi fazer diferente, decidi desafiar minhas autoridades e a minha própria válvula de escape.
Corri para o meu guarda roupa e coloquei a roupa mais bonita que eu tinha. Coloquei minha chave de casa no bolso e peguei meu violão. Chegando na portaria eu tive que inventar uma desculpa para poder sair de casa. Sempre moramos nesse condomínio, os porteiros me conheciam desde que nasci, e meus pais que sempre foram superprotetores pediam para que eles ficassem de olho caso eu saísse de casa, então eles sempre me perguntavam para onde eu ia. Por sorte eu sempre fui familiarizada com a mentira. Claro, não é legal mentir para os pais, mas quem sabe o que aconteceria se eu dissesse tudo o que eu pensava? Aposto que seria expulsa de casa logo na primeira confissão, não teria tempo nem de falar tudo.
Quando desci na portaria o porteiro se dirigiu a mim perguntando para onde eu estava indo, disparei minha resposta rápida e objetivamente.
-Tenho show de talentos na minha escola hoje, só vim buscar meu violão.
Em meio segundo ele liberou o portão e eu saí em direção ao metrô.
***
Sentada no primeiro vagão da linha eu segurava meu violão pelo braço, olhava pela janela do vagão, desacostumados com o metrô achariam aquela cena estranha, já que do lado de fora apenas a parede dos trilhos subterrâneos são visíveis. Mas eu me perdia com aquela paisagem de concreto, com uma boa música tocando, lembro-me que uma das que eu escutei nesse caminho foi Garoa da Marina Peralta. Eu sempre encarei a janela do metrô como uma tela em branco, pintava filmes na minha cabeça, sempre fui muito sonhadora. Dependendo da playlist que eu escutava eu criava meu futuro de formas diferentes. Já pintei um quadro em que eu era uma jogadora de futebol muito reconhecida, já fui uma cantora bem famosa, uma escritora de sucesso, já cheguei a ser até mesmo presidente.
Chegando na estação Ana Rosa eu desci do vagão para fazer baldeação da linha azul para verde. Meu destino naquele momento era o único lugar em que eu poderia me acalmar. Subi em outro vagão agora no sentido Vila Madalena e dessa vez fiquei em pé, com o violão na minha frente, os fones ainda no ouvido e tendo que aguentar olhares de garotos riquinhos que tinham acabado de sair da escola.
Quando o locutor anunciou a estação Trianon-Masp eu desci aliviada por não ser o destino daqueles garotos que me fuzilavam com o olhar. A próxima missão agora era não ser levada pela multidão que ia para a linha amarela, meu destino era oposto.
Chegando novamente na superfície do mundo de fora me deparo com a avenida paulista, não tão cheia como em domingos, mas bastante movimentada. Sigo em direção ao MASP, mas ao invés de ficar por lá desço uma das ruas logo ao lado, indo para seus fundos. A escada dos fundos estava barrada por grades que normalmente são usadas para conter multidões em shows, já era de se esperar já que muitas pessoas iam lá para fumar e chapar. Mas esse não era meu destino, atravessei a rua chegando à escada do Mirante, um restaurante incrível que fica suspenso logo acima da 9 de julho. Eu acredito que a escadaria do mirante seja ainda mais famosa do que o próprio restaurante, eu mesma nunca havia comido lá, só ia para escada apreciar a vista que eu sempre achei linda.
Naquele dia um grupo de jovens estava lá conversando, se divertindo, quase que na base da escadaria. Eu permaneci no topo, sempre achei a visão mais privilegiada lá de cima. Tirei meu violão da capa e sentei no primeiro degrau. Comecei a tocar algumas músicas e só me concentrava no violão, hora ou outra meu olhar voava pelo horizonte, mas logo voltava para o braço do violão, afim de analisar os acordes que meus dedos formavam. Todas a músicas que eu estava tocando eram bem tristes, claro, combinavam com meu estado de espírito naquele momento. A terceira música que toquei foi Talking To The Moon do Bruno Mars e fui surpreendida por um coro daquele grupo de adolescentes sentado mais para baixo, não pude conter meu sorriso, mas não tive coragem de fazer contato visual com nenhum deles.
Logo que terminei aquela música já a emendei com Amianto do Supercombo e o grupo cantou junto também, mas fiquei com o olhar colado no violão até o fim da música. E com o fim eu tomei um susto com uma voz que surgiu do meu lado.
-Moça, você tá na sacada?
Uma garota me perguntou fazendo referência à música que eu tinha acabado de tocar. Ela era linda, os cabelos castanhos passavam um pouco de seus ombros, ondas o tornavam um pouco armado, mas não muito. Seu rosto era fino, tinha pele branca, olhos escuros e ela marcava muito bem suas expressões, para que eu pudesse ler o seu rosto também.
-É só uma música - eu respondi, desviando o olhar para o violão novamente.
Nesse momento ela se permitiu sentar ao meu lado, percebi sua insatisfação com a minha resposta.
-Essa playlist tá meio depressiva, você não acha? - ela insistiu.
Olhei novamente em sua direção, as sobrancelhas franzidas lhe davam um ar questionador e ao mesmo tempo afetuoso. Meu coração tinha se acelerado, eu sempre fico um pouco nervosa quando falo com estranhos.
-Ninguém tá totalmente livre da tristeza – eu fui incisiva, e logo depois me senti mal por ter soado um pouco grossa.
-Concordo plenamente – ela respondeu de pronto com um sorriso grande no rosto, o que me deixou um pouco desconfortável, porque o sorriso dela era muito bonito – a gente só não pode resumir a nossa vida a um sentimento ruim – ela desviou o olhar de mim para a paisagem – afinal a vida não é isso? Momentos que carregamos até o dia da nossa morte? A gente escolhe a importância deles na nossa história.
-Você é algum tipo de missionária ou sei lá? - eu perguntei fazendo graça e ela riu, resultando em um sorriso em mim também.
-Não, na verdade eu não acredito em Deus – ela respondeu olhando pro chão ainda sorrindo.
-Eu ainda não sei no que acredito – tentei parecer empática - mas certamente não é em um barbudo que foi pregado em uma cruz. Claro, não quero parecer desrespeitosa com quem acredita nesse Deus.
Esse comentário a fez rir ainda mais, só que meu sorriso já tinha sumido, eu não gosto de julgar a fé dos outros, acho isso algo muito sério.
De repente fomos surpreendidas por uma trovoada. Nesse momento eu comecei a colocar o violão de volta na capa para não correr o risco de ser molhado. Percebi que os amigos dela começaram pegar blusas de dentro da mochila, mas ela permanecia parada do meu lado.
-Parece que vai chover, né? - ela cortou o silêncio.
-Parece? - eu soei irônica - olha pro céu, vai despencar.
Me levantei da escadaria e ela fez o mesmo. Seus amigos também já estavam de pé colocando suas mochilas nas costas. Mas ainda estávamos parados todos no mesmo lugar. Eu não tinha blusa, então tinha como objetivo sair de lá logo e chegar em casa antes de qualquer um da minha família.
-Você tem um ótimo humor – ela afirmou
-Você acha isso porque não me conhece – eu respondi rapidamente enquanto colocava o violão nas minhas costas sem olhar para ela.
-Então isso é só uma armadura?
-Não, mas é só uma parte de mim.
Aquela resposta deixou-a reflexiva. Quando nos demos conta seus amigos já haviam subido as escadas e um garoto de pele negra e cabelo raspado entregava a ela uma jaqueta com touca.
-Vamos para o Cidade São Paulo, vai começar o maior toró - o garoto se dirigiu a ela.
-Vão indo, eu encontro vocês lá - ela respondeu ainda me encarando e nesse momento todo o seu grupo se entreolhou de forma maliciosa.
Eu ainda estava um pouco assustada porque nunca me permito longas conversas com pessoas que vejo na rua. Mas arriscaria que ela devia ter uns 17 anos, então me sentia menos ameaçada. Olhei para ela querendo entender o que aquilo queria dizer.
-Que outra parte eu posso conhecer? - ela finalmente quebrou o silêncio depois que seus amigos nos deixaram a sós.
-Agora você pode conhecer minha parte cuidadosa – comecei a responder - não quero molhar meu violão.
Ela então percebeu que eu queria sair de lá por causa da chuva.
-E quer ir pra onde?
-Metrô, vou embora, antes que meus pais cheguem e percebam que eu fugi. - Desviei meu olhar para o MASP, me perguntando se subiria para a avenida paulista pela sua esquerda ou pela direita.
-Nossa que rebelde – ela ironizou a situação e eu a encarei com deboche – eu te acompanho até lá.
Logo que demos o primeiro passo o céu começou a despencar em gotas pesadas. Em poucos segundos já estávamos bastante encharcadas, ela me segurou pela mão e corremos para os fundos do MASP. Chegando nas grades ela pulou e se virou para mim.
-Passa o violão pra você pular aqui também - ela falou alto querendo superar o barulho da chuva.
-As grades deixam claro que não é pra passar! - respondi no mesmo tom.
-É rebelde pra fugir de casa, mas não pra fugir da chuva?! - ela provocou. Então pulei a grade sem lhe dar o violão, subimos as escadas e nos escondemos da chuva na porta dos fundos do MASP.
Tirei o violão das costas e o apoiei no chão logo na minha frente, preocupada com a chuva que ele possa ter tomado.
-Fica tranquila, ele tá bem – ela tentou me acalmar.
-Ela – eu corrigi.
-Ela? - uma gargalhada subiu por sua garganta, me fazendo rir também.
-O que? A Sandy é minha companheira a algum tempo já.
-Sandy?! - Ela riu ainda mais alto.
Ruborizei diante aquela situação, eu nem a conheço e contei uma das coisas que conto apenas para amigos mais próximos.
-É, uma bobagem, né? - respondi sem graça.
-É fofo – sua risada foi perdendo a força e ela voltou a me encarar. - Por que você parece estar tão triste?
Aquela pergunta me pegou de surpresa. Por que ela se importa?
-Só tenho me sentido sozinha – apesar da falta de intimidade me senti confortável para falar com ela.
-A solidão não precisa ser ruim – ela respondeu depois de um tempo me encarando com ternura - você parece gostar da sua própria companhia. Não é todo mundo que tem coragem de sair por aí sozinho com um violão.
-Na verdade isso foi uma loucura da minha cabeça, não sei o que deu em mim – disse desviando meu olhar para o chão.
-Já é um começo - sua voz soou doce.
Eu então levantei meu olhar para ela que já estava um pouco mais próxima que antes a ponto de eu sentir levemente sua respiração.
-Eu preciso mesmo ir embora, do contrário minha mãe pode infartar – lancei com o canto dos olhos franzidos e as sobrancelhas arqueadas. Ela olhou para a blusa que segurava como quem procura respostas.
-Vamos, usamos minha blusa para tentar nos encharcar menos – ela levantou o braço me mostrando a peça de roupa – pode não adiantar muita coisa, mas eu faço questão.
Então eu abracei meu violão contra a minha barriga tentando protegê-lo ao máximo e ela passou a blusa por cima de nossas cabeças. Seguimos rumo à estação em passos que entravam em sintonia e depois de um tempo se tornavam descompassados, e nesses breves momentos de assincronia nossos ombros se batiam. Ela desceu comigo até a catraca.
-Foi bom te conhecer – disse por fim.
-Digo o mesmo – eu não sabia bem como reagir e pra minha surpresa ela me abraçou de repente então correspondi ao abraço.
-Fica bem – ela disse ainda me segurando – tenho certeza que você vai superar tudo de ruim e se tornar alguém incrível.
Eu não respondi, aquilo já era estranho o suficiente, mas achei fofo também. Nos desfizemos do abraço com calma e quando nossos rostos se cruzaram ela passou a mão pelo meu pescoço e eu fiquei sem reação, ficamos um tempo nos encarando de perto
-Você acredita em destino? - ela perguntou ainda encarando meu rosto, revezando o olhar entre meus olhos e minha boca.
-Eu acredito que a gente escreve a nossa história.
-Ainda bem que no capítulo de hoje você decidiu vir pra cá então - achei boa a cantada, mas ainda estava assustada então não respondi.
-Bom – iniciei depois de um tempo tentando acabar com aquele momento paralisado – nos vemos depois.
Peguei meu violão e passei a catraca, sem olhar pra trás. Eu sabia que não nos veríamos mais, não temos nenhum contato, não temos nem o nome uma da outra, temos apenas a memória de nossos rostos e vozes.
Esse dia foi muito estranho, eu não sabia bem o que pensar a respeito, mas percebi a felicidade nos gestos. Percebi que a origem da felicidade é a tristeza. Enxerguei aquele acontecimento como um sinal e tudo o que ela me disse me faz lembrar da importância da solidão em alguns momentos.
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